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M A G i s

MAGIS: O mais, maior, mais alto, mais profundo. O que sou e o que posso vir a ser. O que me falta, o que me eleva e acrescenta. O sentido positivo de tudo o que me acontece. O que mais me aproxima da vida verdadeira. MAG is...

M A G i s

MAGIS: O mais, maior, mais alto, mais profundo. O que sou e o que posso vir a ser. O que me falta, o que me eleva e acrescenta. O sentido positivo de tudo o que me acontece. O que mais me aproxima da vida verdadeira. MAG is...

13.09.19

Burro velho aprende línguas


MAG

Entrar nos entas a acreditar que Burro velho não aprende línguas é só mais um passo para nos candidatarmos a compradores de umas socas ortopédicas na farmácia. Depois, o resto do filme está visto. Podemos ficar com os pés quentinhos e confortáveis o resto da vida, à espera de morrer. Giro.

Ou não. É um facto que à medida que a idade avança, avança também a sensação de já não ser possível fazer algumas coisas. Porque não sou capaz, porque parece mal, porque crises de juventude nos entas são ridículas, porque agora depois de velho bla bla bla... certo. Não concordo, mas percebo o medo. Percebo mesmo. Falhar nos entas não é a mesma coisa do que falhar quando somos os adolescentes inconscientes a quem tudo se perdoa. Dá medo mesmo. Pode mesmo ser ridículo! E então? Vamos riscando do livro as coisas que já não podemos ser, fazer, aprender? Esqueçam, isso é deprimente. Não podemos fazer tudo mas podemos tentar fazer tudo. E depois, tranquilamente, chegar a uma de duas conclusões: ou conseguimos e é uma festa; ou não conseguimos e somos suficientemente adultos, maduros e seguros para seguir viagem sem ser preciso hibernar ou ir imediatamente saber o preço da soca.

Pois a mim têm-me calhado alguns desafios da meia idade. Um dos maiores é cozinhar. Um dos maiores é optimismo meu. Isto para mim tem a dimensão de um Everest no meio da cozinha. Eu nunca cozinhei, nunca vi a minha mãe cozinhar e, pior do que tudo, acontece-me gostar de coisas boas ao nível da confecção. Dos outros, claro, sempre dos outros. Porque se os outros não cozinharem e eu estiver sozinha e cheia de fome, autoproclamo-me vegetariana ou vegan ou paleo ou qualquer coisa que não me obrigue a transformar a matéria prima.

A questão é que me aconteceu também ser mãe de três seres que comem. Que coisa, para o que lhes havia de dar! Já nem se usa. Enfim, resumindo aquilo que se me afigurou uma tragédia quando me separei: todos os fogões dos quais andei a fugir durante anos começaram a cair-me qual pedregulhos em cima da cabeça.

- Jovem, acorda para a vida e faz-te ao avental.

Foi um momento aterrador, juro.

- Eu? Eu, cozinhar? Esquece, com curentisseis já não vou lá. Não, não, não. Na vida há sempre alternativas, vamos pensar numa solução impecável, dêem-me só uns dias para me organizar, definhem com fome entretanto... pois, não podia ser. 

Então renasceu em mim o espírito do contra, que me faz sempre achar que comigo não brincam, porque eu sou capaz de tudo. Eles. Os tachos ou sei lá quem. Em modo tu vais ver com quantos paus se faz uma canoa, Ruben Maria, fui tomando algumas decisões prévias (sempre em modo preparatório, enquanto os meus filhos perdiam peso), até chegar a uma espécie de mandamentos da chef-depois-de-velha, que cumpro religiosamente porque adorava ir para o céu com fama de pessoa zen-depois-de-velha:

# Nunca me queixo. Nunca, mesmo. Percebi que se além de ter de cozinhar ainda me tornasse uma mãe maçadora, sempre a dizer que é uma desgraça decidir o que é o jantar todos os dias ou ai que eu não m'aguento com tantas coisas para fazer isto só a mim, seria o fundo do poço, o fim da linha. Nada disso. Eu cozinho porque quero cozinhar, porque adoro alimentar os meus meninos, e só tenho de agradecer pelo relaxamento que esta actividade me proporciona. É isto que sonho quando afogo o queixume e digo a mããããe vai fazer o jantaaaar com voz cantada. Nesta parte entusiasmei-me ligeiramente. Na verdade eu afogo o queixume, abro o frigorífico e fico dezassete minutos a pensar em coisas fantásticas antes de me mexer mais. 

# Não há cá aventais. A pessoa pode cozinhar com o seu melhor kit e compostinha de cara e cabelo, com a coluna a bombar as músicas mais cool do Verão de 2019, a fingir que ainda tem vinte e três aninhos e está num spot-não-sei-quantos-mega-coiso. O ideal seria continuar impecável após a confecção, mas por acaso nunca me aconteceu. 

# Nos dias mesmo maus, em que me apetece distribuir ração de cão por quatro gamelas, respiro fundo, abro um vinho, deixo o vinho respirar fundo também (por exemplo durante todo o tempo em que descasco uma cebola e apanho as cascas que voam pela cozinha inteira), e depois vou bebendo devagar, tendo sempre o cuidado de esconder o copo para o caso de chegar a Comissão de Protecção de Menores.

Em tempo de guerra não se limpam armas, por isso estou sempre autorizada a transformar a cozinha num campo de batalha, desde que no fim saia qualquer coisa comível pelos meus três clientes. Confesso que me excedo a por este mandamento em prática. Se não me controlo, tenho de por a máquina da loiça a lavar pelas 19.30 h, só com as coisas que uso para fazer o jantar, as coisas que acho que vou usar e depois não correspondem, as cenas que voam da bancada sem eu perceber porquê e os muitos utensílios conspurcados que uma pessoa vestida à paisana não pode usar duas vezes no mesmo trabalho. Por vezes opto por uma limpeza integral ao espaço a meio do processo, sempre temendo a dita Comissão. Esta experiência zen tem uma enorme vantagem: deixei de me zangar com as migalhas e restos mortais de leite que as crias deixam nas bancadas. Toda e qualquer emancipação ao nível da auto-alimentação é de incentivar. E eles até sujam pouco. Umas migalhinhas que perdem expressão quando a chef entra em acção.

# Não é permitido abandonar o local do crime. Já incorri no incumprimento deste mandamento e quando cheguei havia esparguete até à máquina da roupa, passando pela placa vitrocerâmica que chiava, aborrecida com os fios fritos a colarem-se-lhe à cutis . Por isso, é essencial que durante o tempo necessário a pessoa faça daquele espaço o seu estúdio pessoal, sempre com um olho no burro (o forno) e outro no cigano (a placa), enquanto pensa na vida ou aproveita para telefonar a alguém que fale muito mas não exija respostas. Também dá para convidar os clientes a visitarem o espaço, para verem com os seus próprios olhos como com paciência, música, vinho, máquinas, panos amarelos e detergentes perfumados, tudo se resolve.

Apesar de todo este folclore, a verdade é que temos todos jantado bem. E graças aos meus mandamentos, isto tem parecido tudo facílimo. Brinco com a minha falta de jeito, mas no fundo espero que, para além de lhes tirar a fome, isto lhes possa servir um dia de estímulo e exemplo. Se a mãe cozinha, tudo é possivel. Podem sonhar ir a Marte com curentissete, meus amores. Garanto-lhes que burro velho aprende línguas e pilotar um foguetão é canja. Mas não das minhas.

 

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