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M A G i s

MAGIS: O mais, maior, mais alto, mais profundo. O que sou e o que posso vir a ser. O que me falta, o que me eleva e acrescenta. O sentido positivo de tudo o que me acontece. O que mais me aproxima da vida verdadeira. MAG is...

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MAGIS: O mais, maior, mais alto, mais profundo. O que sou e o que posso vir a ser. O que me falta, o que me eleva e acrescenta. O sentido positivo de tudo o que me acontece. O que mais me aproxima da vida verdadeira. MAG is...

21.10.19

O medo da diferença


MAG

Num tempo em que no mundo dito civilizado as fronteiras tendem a perder expressão, é paradoxal que a diferença ainda assuste tanto tanta gente.

Vem isto a propósito de uma conversa que tive com os meus filhos sobre duas pessoas que conheci. Em boa verdade, talvez lhes tenha parecido uma conversa sobre refugiados, essa entidade meio abstracta que foge de países em guerra em barcos apinhados de gente que sofre. Mas a conversa não era sobre refugiados. Era sobre a Ghalia e o Nour, que são sírios e neste momento estão refugiados em Portugal (como diz a Ghalia, é melhor não empregar o verbo SER, que anuncia um definitivo que não se deseja). Não interessa a conversa propriamente dita mas sim a reacção dos meus filhos, que por um lado querem saber o que contaram estas pessoas na noite em que estivemos juntos, mas por outro parecem desejar sempre que o relato seja mais cor-de-rosa ou mais rápido, para que o sofrimento dos outros não os faça sofrer tambėm, mesmo que em diferido, com alguns milhares de quilómetros de distância, sem imagem, sem cheiro e sem tom de voz e, por isso, já um tanto ou quanto higienizado em relação ao real.

Os meus filhos são adolescentes. Espero que a vida se encarregue de os capacitar, não só com empatia para com os que sofrem, mas também com curiosidade pela diferença e abertura à diversidade. Mas não só a vida. Nestas alturas também eu questiono o papel que tenho tido e a mãe que tenho sido. Será que inconscientemente, pelos sítios por onde andamos e o tipo de pessoas com quem mais nos damos, eu os tenho privado da diversidade que sinto que lhes falta ainda no horizonte? Será que sabem verdadeiramente que não costumo ter medo da diferença e que, mais do que isso, a procuro e a acolho, não por puro altruísmo mas por necessidade, porque me cansa muito o que começo a saber de cor? Será que os protejo demais das feridas e das dores distantes? Será que percebem que o facto de brincar com as particularidades de cada um, de imitar vozes e de os fazer rir com isso,  não me fecha à heterogeneidade? Agora penso que talvez não consigam ainda ler o retrato completo. É bom ter de vez em quando estes alertas sobre os caminhos por onde estamos a ir. 

E depois, pensando mais a fundo sobre o tema, percebo que não são só os adolescentes que têm medo da diferença. Muitos adultos bem formados, instruídos e informados, também têm. Há diferenças e diferenças. Pensando melhor, nem eu estou preparada para as encarar sempre de frente. O que é que se passa connosco? É muito exótico sair do país e tirar fotografias com crianças em África. Ou mandar os filhos fazer Erasmus em cidades cosmopolitas, onde até têm amigos indianos e nepaleses. Ou saber de cor o We are the world e ter orgulho por ter feito parte de uma geração inclusiva e virada para fora. No fundo julgamo-nos perfeitamente aptos a coser a manta de retalhos díspares que nos envolve, quando nos declaramos livres, modernos e open-minded. 

Sim, o tema anda por aqui e não nos é estranho. É assim que é suposto ser. E nós julgamos, de facto, ter essa maturidade. Mas, saindo do plano teórico: teremos verdadeiramente a capacidade de acolher a diferença no concreto da nossa vida? Permitimos que o nosso pequeno mundo seja invadido, contagiado, desarrumado por pessoas, vidas e situações diferentes das nossas? Essa abertura está espelhada nas pessoas que deixamos entrar? Naqueles que escolhemos ou não escolhemos amar? Nos que têm origens diferentes, raças diferentes, cores diferentes, educações diferentes, hábitos diferentes, estilos de vida diferentes, prioridades diferentes, aspirações diferentes e abraçamos, acompanhamos, desejamos ter por perto? Teremos essa capacidade? Mais, ainda: teremos essa vontade? Parece-me que muitas e muitas vezes estamos ainda bem longe disso.

Muitas vezes, a diferença assusta. Tira-nos do conforto do que conhecemos de cor e daquilo a que estamos habituados. Acolher a diferença é muito mais do que dizer que a aceitamos. Porque nos pede acção e concretização. Exige que saiamos de nós e que vamos ao encontro do outro num território comum que não existe ainda, que tem de ser desenhado, construído e cuidado. Dá trabalho e é um risco, o risco de tudo o que não conhecemos bem. No limite, fragiliza-nos pela surpresa e pelo inesperado, ou até mesmo pela reacção que o nosso mundo arrumado pode ter a esta espécie de rebeldia. Põe-nos à prova. Pede-nos que sejamos contracorrente, num tempo em que a superficialidade impera. Pede-nos que mergulhemos fundo, que demos passos reais, que deixemos mesmo que a manta de retalhos nos abrace e aqueça.

E porque temos vidas apressadas e cheias, tudo o que nos dá mais trabalho vem complicar. Estamos tão arrumados e orientados, e mesmo assim já é tão difícil! Temos ainda de integrar os diferentes, de nos aproximarmos dos que chegam, de nos preocuparmos com os que sofrem ou com os que fazem um qualquer caminho solitário, de estender os braços como polvos, de ter essa perspicácia permanente? Que coisa... temos o espírito aberto mas não nos peçam tanta acção! É isto que sentimos muitas vezes. É isto que sinto muitas vezes em mim e em muitos dos que me rodeiam (não todos... conheço verdadeiros recordistas na arte de dar o peito às balas). Somos espíritos abertos observadores. Dizemos que sim com a cabeça.

- Venham, venham, entrem mas não demais, sentem-se onde houver um lugar livre, procurem, não façam ondas e agradeçam.

Somos os super modernos do sofá, como os treinadores de bancada e os decisores de gabinete. Quando estivermos de férias logo registamos os momentos de comunhão com os diferentes, para partilhar no Instagram. Agora não, que já temos toda a vida combinada por muito tempo.

Com tudo isto, lembrei-me do Dino. Não preciso de ir muito longe para me ver nestes cenários. Conheci o Dino na Sexta-Feira passada, ao fim da tarde, em Lisboa. Eu passava no Campo das Cebolas, já estava escuro, as gentes corriam apressadas para chegar a casa ou mais depressa ao fim-de-semana, e eu também estava com pressa para chegar ao carro e sair dali para ir ter com as minhas amigas. O Dino pediu-me um cigarro. Eu dei. Mas ele não queria só um cigarro. Ele queria conversar. Tinha uns olhos doces, a brilhar como oásis na pele estragada. Ao princípio não vi nada disso. Vi um chato que me estava a empatar e que provavelmente ainda me tentaria assaltar, se eu me distraísse.

- Como é que te chamas?

- Margarida.

- Nome bonito. Eu sou o Dino. Prazer. Obrigado pelo cigarro.

E não chegava o cigarro? Não, não chegava. Ele queria saber como é que eu estava, se costumava passar por ali, se morava perto, se nos íamos voltar a cruzar. Soa sempre estranha a curiosidade dos diferentes. Até a quem se julga preparado para quase tudo, como eu. Eu sou daqui, dizia ele. Daqui. Da rua, das escadas, do bairro, de qualquer sítio diferente do meu. Como os meus filhos, quis ler um contexto mais cor-de-rosa, por isso não averiguei. Sentámo-nos, porque ele pediu. Falava pausadamente, a olhar-me nos olhos, alheio à correria geral, como se fosse de outro tempo. Eu lutava entre o desconforto de estar sentada a conversar com um desconhecido - com a exata consciência de que o desconforto vinha mais do aspecto dele do que da situação em si - e a vontade de lhe ser agradável e de retribuir a simpatia que parecia ter por mim. O tal medo da diferença, temperado com o desejo de conseguir, também eu, ser diferente. Há pequenos grandes desafios que chegam quando menos esperamos, quando temos pressa e queremos passar rapidamente para o lugar de conforto que se segue. Mas soou a campaínha. A conversa com os meus filhos estava ainda bem fresca na minha memória. E afinal eu tinha tempo. Fiquei, até que ele acabasse o cigarro e as perguntas, e o medo se esvaísse com o fumo e fosse possível despedirmo-nos em paz.

-  Já vais?

- Já, vou jantar com as minhas amigas. Queres mais um cigarro?

- Não, não. Um está bom. Isto faz mal. Não fumes mais, também. Gostei destes cinco minutos. Bom jantar.

Acabou por ser uma boa paragem. E, agora que a relembro, o mea culpa é inevitável. Acho que preciso de muitos mais cinco minutos assim. A minha manta de retalhos ainda não vale grande coisa.

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Photo by MAG

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